Não existe cristianismo sem cruz - Padre Paulo Ricardo
A tentação de apresentar um cristianismo sem cruz revela-se, aos poucos, decepcionante, porque é somente na cruz que se descobre o amor de Deus.
A cruz possui um significado inegociável para o
cristianismo. É somente por meio do Cristo crucificado que se pode compreender
“o poder de Deus" (cf. 1 Cor 1, 24) e a sua ação salvífica entre os
homens. Por isso, na pregação evangélica de Jesus, tudo se resume a esta
exortação: “Se alguém quiser vir comigo, renuncie-se a si mesmo, tome sua cruz
e siga-me" (cf. Mt 16, 24). Não se trata de mera retórica, mas da
apresentação de um dado incontestável: não há redenção sem cruz. O homem que
quiser se salvar, deverá, necessariamente, apegar-se às cruzes do dia a dia,
renunciando-se a si mesmo, tal qual o Filho do Homem fez no lenho da salvação.
Após aquele encontro fatídico na estrada para Damasco,
São Paulo pôde perscrutar o significado autêntico da renúncia anunciada por
Jesus. Viu que a lógica da cruz consiste num abandono confiante no “Evangelho
da graça", o qual nos apresenta a salvação não como prêmio que se
conquista por meio de esforços puramente humanos. É dom gratuito; Deus confunde
a “sabedoria" humana ao doar-se inteiramente ao homem — “o que é tido como
debilidade de Deus é mais forte que os homens" (cf. 1 Cor 1, 24). São
Paulo, por sua vez, fazendo frente às tendências de sua época, não deixou de
anunciar aos seus interlocutores a “loucura" e o “escândalo" do
madeiro santo: “Porque a linguagem da Cruz é loucura para aqueles que se
perdem; mas poder de Deus para os que se salvam, isto é, para nós" (cf. 1
Cor 1, 18-23).
Como nos tempos de São Paulo, a
sociedade moderna não é simpática à mensagem da cruz de Cristo.
Nas pegadas do Apóstolo
das gentes, a Igreja sempre procurou incutir na sociedade o necessário e
urgente apelo do Crucificado, sobretudo quando estes esforços sofriam oposição
da mentalidade pagã e autossuficiente do período. Ela testemunhou pelo
derramamento de sangue — tal qual São Pedro, que se deixou crucificar de cabeça
para baixo, achando-se indigno de ter uma morte igual à de Jesus —, pela vida
abastada e longe das comodidades do mundo — a exemplo dos monges eremitas e dos
irmãos e irmãs do Carmelo —, como também pela atualização diária e milagrosa do
próprio sacrifício de Jesus, através da celebração da Santa Eucaristia. Em
poucas palavras, pode-se dizer que a pregação da Igreja se fundamentou
ordinariamente neste pequeno, mas não menos verdadeiro, princípio: “Quando
vires uma pobre Cruz de madeira, só, desprezível e sem valor... e sem
Crucificado, não esqueças que essa Cruz é a tua Cruz" [1].
Por outro lado, grande e persistente foi a oposição
sofrida pelo anúncio do Cristo crucificado ao longo da história. Algo que não
surpreende, todavia. Dada a realidade do pecado original, que faz com que os
homens tenham os pensamentos do mundo e não os de Deus (cf. Mt 16, 23), o ser
humano “é continuamente tentado a desviar o seu olhar do Deus vivo e verdadeiro
para o dirigir aos ídolos (cf. 1 Ts 1, 9), trocando 'a verdade de Deus pela
mentira' (cf. Rm 1, 25)" [2]. De fato, para uma mentalidade submissa
àquilo que São João chamava de “concupiscência da carne", “concupiscência
dos olhos" e “soberba da vida", isto é, os ídolos que o mundo
oferece, a cruz pode parecer uma realidade muito pouco atraente e sem sentido
[3]. Nestes dois últimos séculos, em que não raras vezes os santos padres
tiveram de lidar com propostas subversivas, dentro e fora da Igreja, cuja
finalidade principal era substituir o Cristo crucificado por uma concepção
cristã praticamente ateia, esse drama se revela ainda mais grave.
É particularmente notório um episódio da luta de Pio XI
contra a ideologia nazista. Por ocasião da visita de Hitler a Roma, tendo se
espalhado, a pedido de Mussolini, as suásticas do nacional-socialismo por toda
a cidade eterna, o Papa Ratti ordenou que nenhuma bandeira fosse exposta nas
sacadas do Vaticano, foi para Castel Gandolfo, e mandou escrever no L'Osservatore
Romano que o ar de Roma estava irrespirável e que a ele não agradava nem um
pouco ficar num lugar onde havia uma cruz que não era a de Cristo. Algo
semelhante ocorreu com João Paulo II, quando da sua viagem à Nicarágua, em
1983. O governo sandinista, apoiado por padres ligados à Teologia da
Libertação, havia organizado um infeliz protesto contra o papa. Na missa
campal, foram colocados no altar, de propósito, cartazes de guerrilheiros em
vez do crucifixo. O então secretário pessoal do santo papa, Cardeal Stanislaw
Dziwisz, conta em suas memórias [4]:
[...] O Santo Padre, praticamente
sozinho, enfrentou o tumulto e fez frente aos provocadores. Foi inesquecível a
cena em que os sandinistas agitavam suas bandeiras rubro-negras, enquanto ele,
de cima do palco, opunha-se a eles, levantando na direção do céu o báculo com o
crucifixo na ponta.
Também dentro da Igreja esses confrontos contra a cruz de
Cristo não faltaram. Nas sessões do Concílio Vaticano II, infelizmente, muitos
foram os que sugeriram o abandono do sinal da cruz durante a liturgia, por este
supostamente já não mais corresponder ao espírito do homem moderno [5]. Nas
universidades de teologia, por sua vez, “a maneira blasfema como então se
zombava da cruz como sendo um sadomasoquismo" era de se lamentar [6]. O
então padre Joseph Ratzinger, futuro Bento XVI, escreve a respeito: “Vi o rosto
horrível, sem disfarce, dessa piedade ateia; vi o terror psicológico,
desenfreado, com o qual se conseguia sacrificar toda consideração moral como restante
de um espírito burguês, quando se tratava da meta ideológica" [7].
Não se trata de mera retórica, mas
da apresentação de um dado incontestável: não há redenção sem cruz.
Como nos tempos de São Paulo, a sociedade moderna não é
simpática à mensagem da cruz de Cristo. Ao contrário, há certamente aquele
número de indivíduos que, ludibriados pelas promessas ideológicas, depositam a
própria esperança em obras e esforços humanos, a fim de alcançar um paraíso
aqui na terra. É a tentação do neopelagianismo. Mutatis
mutandis, como também não pensar nos “profetas" da técnica,
verdadeiros gurus do modernismo, que, “fiando-se demasiadamente nas descobertas
atuais", julgam desnecessária a mensagem evangélica, dando margem ao
ceticismo e ao agnosticismo [8]? And
last, but not least, que dizer das seitas e heresias que proliferam,
fazendo com que o cristianismo e, por conseguinte, a Igreja deixem de ser a
Mater et Magistra da sociedade, como gostava de definir São João XXIII, para se
converter em uma mera instituição filantrópica ou sentimentalista?
A Igreja deve seguir o caminho do Esposo. Renegar a cruz
seria como que um adultério. A tentação de apresentar um cristianismo sem cruz,
no intuito de satisfazer o gosto da clientela, aos poucos, mostra-se
frustrante. Sem o Cristo crucificado se perde o dom gratuito do Pai que, amando
o mundo de tal maneira, entrega Seu Filho único em holocausto. É nisto que
conhecemos o amor. Não há mensagem mais urgente, mais necessária, mais
imprescindível para o homem que a mensagem do amor de Deus. Nenhum esforço
humano, nenhuma sabedoria humana, nenhuma teologia da “libertação" ou da
“prosperidade" é realmente capaz de libertar o homem e fazer com que ele
progrida na santidade. É Cristo crucificado que nos traz a redenção, porque foi
para isto que Ele se manifestou: “para destruir as obras do demônio" (cf.
1 Jo 3, 8).
É, pois, na morte crucificada que se
encontra a verdadeira vida.
De: Padre Paulo Ricardo (padrepauloricardo.org)
Disponível em: Não existe cristianismo sem cruz!
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