por Lucivan Santana de Andrade
Reflexão
pascal do poema “Noite Escura” de São João da Cruz
Dentre a vasta e rica
literatura da santa Igreja, de todos os seus santos padres, doutores e
místicos, que fizeram muito mais do que um simples comentário sobre o mistério
pascal, mas que viveram intensamente este mistério muito mais do que
escreveram, pequeno eu, que em meio à eles, na pretensão de expressar, sim um
simples comentário aos mistérios que iremos celebrar, medito este riquíssimo
poema de São João da Cruz, que não se acabará obviamente em sua riqueza com
este simples comentário feito abaixo.
1. Em
uma noite escura,
De amor em vivas ânsias inflamada,
Oh, ditosa ventura!
Saí sem ser notada,
Já minha casa estando sossegada.
De amor em vivas ânsias inflamada,
Oh, ditosa ventura!
Saí sem ser notada,
Já minha casa estando sossegada.
2. Na
escuridão, segura,
Pela secreta escada, disfarçada,
Oh, ditosa ventura!
Na escuridão, velada,
Já minha casa estando sossegada.
Pela secreta escada, disfarçada,
Oh, ditosa ventura!
Na escuridão, velada,
Já minha casa estando sossegada.
3, Em
noite tão ditosa,
E num segredo em que ninguém me via,
Nem eu olhava coisa,
Sem outra luz nem guia
Além da que no coração me ardia.
E num segredo em que ninguém me via,
Nem eu olhava coisa,
Sem outra luz nem guia
Além da que no coração me ardia.
4.
Essa luz me guiava,
Com mais clareza que a do meio-dia,
Aonde me esperava
Quem eu bem conhecia,
Em sítio onde ninguém aparecia.
Com mais clareza que a do meio-dia,
Aonde me esperava
Quem eu bem conhecia,
Em sítio onde ninguém aparecia.
5. Oh,
noite que me guiaste!
Oh, noite mais amável que a alvorada!
Oh, noite que juntaste
Amado com amada,
Amada já no Amado transformada!
Oh, noite mais amável que a alvorada!
Oh, noite que juntaste
Amado com amada,
Amada já no Amado transformada!
6. Em
meu peito florido
Que, inteiro para ele só guardava,
Quedou-se adormecido,
E eu, terna, o regalava,
E dos cedros o leque o refrescava.
Que, inteiro para ele só guardava,
Quedou-se adormecido,
E eu, terna, o regalava,
E dos cedros o leque o refrescava.
7. Da
ameia a brisa amena,
Quando eu os seus cabelos afagava,
Com sua mão serena
Em meu colo soprava,
E meus sentidos todos transportava.
Quando eu os seus cabelos afagava,
Com sua mão serena
Em meu colo soprava,
E meus sentidos todos transportava.
8.
Esquecida, quedei-me,
O rosto reclinado sobre o Amado;
Tudo cessou. Deixei-me,
Largando meu cuidado
Por entre as açucenas olvidado.
O rosto reclinado sobre o Amado;
Tudo cessou. Deixei-me,
Largando meu cuidado
Por entre as açucenas olvidado.
Mesmo sem a intenção de
expressar a vivencia do mistério pascal, São João da Cruz realiza neste poema
sinteticamente o mistério que devemos realizar diariamente em nossas vidas
eternizando o mistério que celebraremos nos próximos dias.
A antinomia vivida na
alma segundo o místico produz a única e verdadeira possível felicidade que
podemos experimentar nesta vida, pois é na noite escura da alma que a pessoa
encontra a luz mais brilhante que o sol, mais brilhante que a “luz do meio-dia”
(estrofe 4). Santo Agostinho chama de “interior intimo meo” (o mais íntimo do
meu interior) é onde Deus está, onde Deus faz a sua morada segundo São João da
Cruz. Nesta noite escura da alma é possível “ver a Deus” tão claro como o dia,
de uma forma “transparente”.
Este mesmo paradoxo nós
devemos fazer ao contemplar a crucificação na sexta-feira santa. A antinomia
que acontece na páscoa, portanto, consiste em ver a luz radiante de Deus na
aparente “escuridão da Cruz”.
A pedagogia joanina
neste poema, de mostrar com algumas antinomias, por exemplo: “Em uma noite escura, (...) Já minha casa
estando sossegada” (estrofe 1), “Na escuridão, segura (...) Já minha casa (alma)
estando sossegada.” (estrofe 2), “Em noite tão ditosa, (...) Sem outra luz nem guia, Além da que no
coração me ardia.” (estrofe 3), “Essa luz me guiava, Com mais clareza que a do
meio-dia, (...) Em sítio onde ninguém aparecia.” (estrofe 4), “noite mais
amável que a alvorada” (estrofe 5), “E eu, terna, o regalava, Quedou-se
adormecido” (estrofe 6), “Esquecida, quedei-me, O rosto reclinado sobre o Amado”
(estrofe 8); o desejo da alma por Deus, torna o mistério pascal mais perfeito,
pois traz para dentro da alma o mistério de celebrar sacramentalmente e
espiritualmente o mesmo mistério que Jesus passou.
Desta forma, como o próprio místico afirma em outro poema, “O
demônio teme a alma unida a Deus como ao próprio Deus”. E assim, unindo nossa alma à alma de Cristo, alcançaremos o que São
Paulo diz: “não sou eu que vivo mais Cristo que vive em mim” (Gl 2, 20);
dizendo portanto, será Cristo quem morrerá e ressuscitará em mim diariamente e
principalmente nos próximos dias.
[1] Me
refiro aqui o sentido de antinomia não ao de contradição entre duas leis, mas,
de uma unificação sem distinção uma da outra.
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