UMA "ANTINOMIA"[1] PASCAL


por Lucivan Santana de Andrade

Reflexão pascal do poema “Noite Escura” de São João da Cruz

Dentre a vasta e rica literatura da santa Igreja, de todos os seus santos padres, doutores e místicos, que fizeram muito mais do que um simples comentário sobre o mistério pascal, mas que viveram intensamente este mistério muito mais do que escreveram, pequeno eu, que em meio à eles, na pretensão de expressar, sim um simples comentário aos mistérios que iremos celebrar, medito este riquíssimo poema de São João da Cruz, que não se acabará obviamente em sua riqueza com este simples comentário feito abaixo.
1. Em uma noite escura,
De amor em vivas ânsias inflamada, 
Oh, ditosa ventura!
Saí sem ser notada,
Já minha casa estando sossegada.
2. Na escuridão, segura,
Pela secreta escada, disfarçada, 
Oh, ditosa ventura!
Na escuridão, velada,
Já minha casa estando sossegada.
3, Em noite tão ditosa,
E num segredo em que ninguém me via,
Nem eu olhava coisa,
Sem outra luz nem guia 
Além da que no coração me ardia.
4. Essa luz me guiava,
Com mais clareza que a do meio-dia,
Aonde me esperava
Quem eu bem conhecia,
Em sítio onde ninguém aparecia.
5. Oh, noite que me guiaste!
Oh, noite mais amável que a alvorada!
Oh, noite que juntaste
Amado com amada,
Amada já no Amado transformada!
6. Em meu peito florido
Que, inteiro para ele só guardava,
Quedou-se adormecido,
E eu, terna, o regalava,
E dos cedros o leque o refrescava.
7. Da ameia a brisa amena,
Quando eu os seus cabelos afagava,
Com sua mão serena
Em meu colo soprava,
E meus sentidos todos transportava.
8. Esquecida, quedei-me,
O rosto reclinado sobre o Amado;
Tudo cessou. Deixei-me,
Largando meu cuidado
Por entre as açucenas olvidado.
Mesmo sem a intenção de expressar a vivencia do mistério pascal, São João da Cruz realiza neste poema sinteticamente o mistério que devemos realizar diariamente em nossas vidas eternizando o mistério que celebraremos nos próximos dias.
A antinomia vivida na alma segundo o místico produz a única e verdadeira possível felicidade que podemos experimentar nesta vida, pois é na noite escura da alma que a pessoa encontra a luz mais brilhante que o sol, mais brilhante que a “luz do meio-dia” (estrofe 4). Santo Agostinho chama de “interior intimo meo” (o mais íntimo do meu interior) é onde Deus está, onde Deus faz a sua morada segundo São João da Cruz. Nesta noite escura da alma é possível “ver a Deus” tão claro como o dia, de uma forma “transparente”.
Este mesmo paradoxo nós devemos fazer ao contemplar a crucificação na sexta-feira santa. A antinomia que acontece na páscoa, portanto, consiste em ver a luz radiante de Deus na aparente “escuridão da Cruz”.
A pedagogia joanina neste poema, de mostrar com algumas antinomias, por exemplo: “Em uma noite escura, (...) Já minha casa estando sossegada” (estrofe 1), “Na escuridão, segura (...) Já minha casa (alma) estando sossegada.” (estrofe 2), Em noite tão ditosa, (...) Sem outra luz nem guia, Além da que no coração me ardia.” (estrofe 3), “Essa luz me guiava, Com mais clareza que a do meio-dia, (...) Em sítio onde ninguém aparecia.” (estrofe 4), “noite mais amável que a alvorada” (estrofe 5), “E eu, terna, o regalava, Quedou-se adormecido” (estrofe 6), “Esquecida, quedei-me, O rosto reclinado sobre o Amado” (estrofe 8); o desejo da alma por Deus, torna o mistério pascal mais perfeito, pois traz para dentro da alma o mistério de celebrar sacramentalmente e espiritualmente o mesmo mistério que Jesus passou.
Desta forma, como o próprio místico afirma em outro poema, O demônio teme a alma unida a Deus como ao próprio Deus”. E assim, unindo nossa alma à alma de Cristo, alcançaremos o que São Paulo diz: “não sou eu que vivo mais Cristo que vive em mim” (Gl 2, 20); dizendo portanto, será Cristo quem morrerá e ressuscitará em mim diariamente e principalmente nos próximos dias.


[1] Me refiro aqui o sentido de antinomia não ao de contradição entre duas leis, mas, de uma unificação sem distinção uma da outra.

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